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O Caipira Picando Fumo (1893). José Ferraz de Ameida Júnior

Alguns críticos consideram Almeida Júnior como o Vemeer brasileiro. De fato, como o mestre retratista do barroco holandês do século XVII, Almeida Junior exibe a habilidade de criar retratos com profundidade psicológica e um agudo sentido de empatia. Senão, vejamos. Faça o seguinte exercício de observação: o homem retratado nesta tela é feliz?
A questão não é desprezível, pois a figura do caipira já foi representada e descrita de variadas formas, quase sempre alheias ao próprio caipira, ao passo que o pintor de Itu lhe confere uma dignidade sem mistificação.
No clássico “Viagem à Província de São Paulo (1816-1822)”, o viajante francês Saint Hilaire nos oferece uma imagem marcadamente negativa do caipira:

"Enquanto descrevia e examinava as plantas, aproximou-se um homem do rancho, permanecendo várias horas a olhar-me, sem proferir qualquer palavra. Desde Vila Boa até Rio das Pedras, tinha eu quiçá cem exemplos dessa estúpida indolência. Esses homens, embrutecidos pela ignorância, pela preguiça, pela falta de convivência com seus semelhantes e, talvez, por excessos venéreos primários, não pensam: vegetam como árvores, como as ervas do campo. Obrigado pela ventania a deixar o rancho, fui procurar abrigo numa das cabanas principais, mas admirei-me da desordem e da imundície reinantes na mesma”(Viagem à Província de São Paulo).
Cem anos depois o glorioso Monteiro Lobato (1882-1948) registra o estereótipo mais conhecido do caipira como homem da preguiça, gente com uma espécie de fraqueza de vontade. Antes de se lançar à literatura infantil, Monteiro Lobato escreveu Urupês (1918) no qual apresenta sua visão negativa do caipira, pela imagem de seu personagem principal, o Jeca Tatu:

"O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cinqüenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo de sua resistência às privações, nem mais nem menos. 'Dando pra passar fome', sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro está tudo bem; assim fez o pai, o avô, assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro. "(Urupês)

Euclides da Cunha (1866-1909) publicaria em 1939 sua obra mais célebre, Os Sertões, em que o homem do campo emerge com uma feição totalmente diferente: é um forte antes de tudo. Embora se ocupasse do sertanejo nordestino, sua descrição tem sido utilizada também para retratar o homem do meio rural em geral:

"... O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. É o homem permanentemente fatigado.Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias..." (Os Sertões, Euclides da Cunha)
No mundo da pintura o tema do homem do campo aparece em Portinari, com O Derrubador Brasileiro, de feição ligeiramente artificial e idealizada. Já na série sobre os retirantes, Portinari deixa-nos mais do que retratos individuais e constrói uma denúncia visual sobre a pesada injustiça social que obriga o nordestino a migrar e a sepultar seus parentes com redes.
Almeida Júnior pertence a uma geração de pintores que teve a coragem de tomar distância dos grandes temas oficiais, então dominantes, para colocar em cena homens e mulheres anônimos, num claro movimento que procurava celebrar a vida cotidiana. Juntamente com Rodolfo Amoedo (1857-1941), Belmiro de Almeida (1858-1935) e Henrique Bernardelli (1857-1936), Almeida Junior também foi aluno de Victor Meireles (A primeira Missa, Batalha do Guararapes) e Pedro Américo (Grito do Ipiranga, Batalha do Avaí) e ultrapassou a produção dos seus mestres ilustres para dar vazão a um trabalho inovador, mas ainda pouco reconhecido.
Como aponta o historiador Luis Marques "as inovações da geração Amoedo foram o desarme das poses e da gestualidade teatral, a celebração da vida cotidiana e da variedade de tipos populares, o desvendamento do mundo do artista, o fascínio pela individualidade e sensualidade” (30 Mestres da Pintura no Brasil. Introdução ao Catálogo da Exposição de mesmo nome realizada em maio-julho de 2001 no MASP).
Um olhar mais atento aos elementos estéticos desta tela pode nos auxiliar a entender a força expressiva do caipira de Almeida Júnior
O historiador da arte Jorge Coli assim descreve a composição desta obra:

“A característica mais constante na obra de Almeida Júnior é o sentido exato da composição. A geometria é sua aliada. Onde outros estariam interessados apenas no modelo, Almeida Júnior percebe-o por meio de estruturas. O caipira pertence ao fragmento de cenário por trás dele, que compõe a estrutura espacial.: a viga é uma faixa horizontal que corta a tela ao meio ao sustentar os batentes da mesma espessura, formando uma trama de Mondrian. Os troncos dos degraus então em paralelo com a viga. As tábuas da porta em paralelo com os batentes e as linhas quadriculadas se acentuam no pau-a-pique (...)”
“Assentados nestas composições sem falhas os caipiras de Almeida Júnior estão sempre em ação, distanciando-se da antropologia física, e aproximando-se das relações culturais pelos gestos e objetos” “Como Estudar a Arte Brasileira do Século XIX. Editora Senac, SP, 2005”

A faca da tela remete ao tema do trabalho e da violência do caipira. Baseado no estudo de Maria Silvia Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata, podemos identificar o contexto cultural da cena retratada por Almeida Júnior.

[ ... ] ao meio-dia e pouco mais ou menos, de sua casa que e próxima à de Antonio dos Santos, viu João Rita sentado à porta de Santos a tocar viola e que, daí a pouco ouviu a mulher de Antonio dos Santos a gritar por Nossa Senhora d' Aparecida e, bem assim, ouviu o barulho de pancadas e viu a João Rita ensangüentado e a Antônio dos Santos com a foice com que havia ofendido a João Rita”

As condições de produção e de vida cotidiana (a pobreza das técnicas de exploração da natureza, limites estreitos das possibilidades de aproveitamento do trabalho e a conseqüente escassez dos recursos de sobrevivência, como enumera Maria Sylvia de Carvalho Franco) conduzem ao que a autora chama de "sobreposição de áreas de interesse".
As zonas de atrito estão constantemente presentes, latentes, pressupostas mesmo quando não avançam para o primeiro plano. São "processos competitivos sem alternativas muito plásticas para se resolverem, dado o caráter simples e flexível dos mecanismos de ajustamento inter-humano".
Resulta da obra de Almeida Júnior, um retrato do caipira distante do exotismo então em moda no final do século XIX e início do XX, no teatro, música e na pintura. Seu caipira solitário não é pitoresco, não é dramático e muito menos heróico. Não tem a força da classe trabalhadora do Mestiço de Portinari, não sugere exaltação da força de trabalho