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"Sansão e Dalila" (1609). Peter Paul Rubens. Obra fantástica do barroco holandês, a tela Sansão e Dalila abriga uma multiplicidade de significados. A trama bíblica carrega uma profunda carga psíquica que, certamente, apavarou a mente de homens e mulheres ao longo de milênios. A versão de Rubens, por sua vez, combina sensualidade e uma textura exuberante de superfícies carnosas, fartas, voluptosas, atravessadas por vários tipos de contrastes, como luz e sombra, juventude e velhice, amor e traição, força e fragilidade. O poder da mulher castradora é a mensagem psicanalítica mais evidente, pois o cabelo, assim como a cabeça, simbolizam a castração. A psicanalista Melanie Klein chega a apontar o complexo de castração como um elemento definidor do baixo rendimento escolar das crianças. Em primeiro lugar vamos conferir a narrativa bíblica. Sansão era um nazareno dotado de extraordinária força. Era um dos juízes bíblicos cuja história está descrita no Livro dos Juízes (13-16) e no Novo Testamento (Hebreus 11,32).Conta-se que Deus teria chamado Sansão para libertar o povo de Israel que vivia dominado pelo Filisteus. Estes, que tinham um medo enorme da força do nazareno, tentavam sem sucesso prender Sansão. Os governantes filisteus, sabendo da paixão de Sansão pela filisteia Dalila, aliciaram a jovem, com 1100 moedas de prata, a descobrir a origem da força invencível de Sansão. Dalila amava Sansão, mas este amor era inferior ao que sentia pelo seu povo. Com o seu grande poder de sedução, Dalila tentou não só desvendar de Sansão o segredo da sua força, como também arranjar uma forma para que ele fosse dominado pelos finisteus. A riqueza de Rubens Na versão de Rubens a narrativa bíblica ganha um toque elegante, misterioso e sedutor. Peter Paul Rubens (1577-1640) viveu uma história de sucesso. Foi o maior pintor de sua época, mestre do barroco holandês que retratou todos os reis mais poderosos da Europa. A fama de Rubens atingiu toda o continente e ele recebeu encomendas de dirigentes como Filipe III e IV, da Espanha, a rainha-mãe Maria de Médici, da França, e Carlos I, da Inglaterra. No início da carreira trabalhou para o duque de Mântua, que o transformou em diplomata. Enviado em missão política à Espanha lá teve acesso à coleção real de Madri (hoje no Museu do Prado). Na Itália travou contato com a obra de Michelângelo, na Capela Sisitina. Rubens morreu rico e bem-sucedido em tudo o que fez e deixou um imenso legado de arte barroca. A riqueza maior encontra-se na sua fatura, isto é, no modo como concebia as cores e as formas. Com uma pincelada forte e empastada, as figuras de Rubens parecem ganhar textura e suas mulheres exibem uma carnalidade nunca antes vista. É devedor da musculatura dos corpos de Michelângelo, como podemos observar nos braços tanto de Dalila quanto de Sansão. Mas nem mesmo o mestre florentino tinha alcançado o efeito que Rubens conseguiu dar à pele. Dizia-se, em sua época, que Rubens pintava como quem usasse sangue e leite para criar suas cores. Michelângelo também não dominava a técnica do claro-escuro, que viria se popularizar pelo outro Michelângelo, o da Caravaggio, que deixou profunda marca geração de Rubens. Assim, de posse de cores humanas e do mistério das sombras exageradas, Rubens entrega-se à tarefa de dar vida à heroína bíblica que causou a morte e seu amante gigantesco, um tema que bem caberia na companhia das grandes sibilas da Capela Sistina. O resultado é uma composição marcada pelos antagonismos. Repare que a velha senhora se aproxima da jovem Dalila, deixando lado a lado a beleza desta e a feiúra daquela. Cada detalhe da vigorosa musculatura de Sansão é acentuado pelo uso do claro-escuro em pequena escala. Em grande escala, a mesma técnica cria campos narrativos bem definidos na composição: o foco iluminado no rosto da heroína-traidora contrasta com o fundo que esconde, bem lá atrás, os soldados que esperam o melhor momento para capturar o gigante indefeso. Entre as duas cenas pode-se desvelar uma mancha luminosa que descortina uma pequena estátua da Deusa Afrodite e de seu filho Cupido. São colaboradores pagãos para a artimanha da hebréia, assistindo a cena, da qual teriam participado momentos antes. Afinal, a sedução antecede à traição. É sempre assim. O preciosismo técnico de Rubens não se sobrepõe ao efeito narrativo, colabora com ele. Basta observar como a jovem, de seios fartos e sensuais, acaricia com a mão esquerda a imensa superfície das costas do homem que tanto ama. Mas a ternura de seu olhar convive com o gesto de retraimento denunciado pelo braço direito, que inicia um movimento de distanciamento do prisioneiro. Amor e traição (mais um forte antagonismo) envolve o corpo cansado de Sansão, convertido em menino frágil e vulnerável no colo na mulher amada. Aquele que antes exibia uma força titânica, encontra-se agora reduzido à sonolência. Assim desmaiado de amor e de prazer, todo homem perde sua potência, momentaneamente é verdade, mas inexoravelmente. Quem disser o contrário estará mentindo, iludindo o público feminino. O destino de todo homem é perder sua virilidade na fragilidade aparente da mulher, na qual se consome, quando se consuma, a potência masculina. A figura da mulher castradora é personagem recorrente nas narrativas bílblicas. Judite seduziu o general inimigo Holofernes e o decapitou. João Batista teve o mesmo fim, por capricho de Salomé, a fiilha de Herodes Antipas. Quantas gerações não se atormentaram diante das façanhas destas mulheres fatais, transmitidas repetidas vezes? A psicanálise localiza aí um sentimento primitivo de todo homem (e de toda mulher também). O medo da castração faz parte de uma constelação de complexos que se produzem na infância, segundo os relatos que Freud colheu em sua experiência clínica. A castração, segundo a Psicanálise Veja como o respeitado psicanalista Laplanche define o Complexo de Castração: "Complexo centrado na fantasia de castração, que proporciona uma resposta ao enigma que a diferença anatômica dos sexos (presença ou ausência de pênis) coloca para a criança. Essa diferença é atribuída à amputação do pênis na menina. A estrutura e os efeitos do complexo de castração são diferentes no menino e na menina. O menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna em resposta às suas atividades sexuais, surgindo daí uma intensa angústia de castração. Na menina a ausência do pênis é sentida como um dano sofrido que ela procura negar, compensar ou reparar. O complexo de castração está em estreita relação com o complexo de Édipo e, mais especialmente, com a função interditória e normativa". LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da Psicanálise, Martins Fontes, 2001, p 72) Freud, fundador da psicanálise, associa o medo da castração ao conjunto das atividades sexuais da criança. Sexualidade infantil nunca havia sido abordada antes de Freud e até hoje é negada por correntes tradicionalistas. Para Freud, no entanto, a castração é uma ficção que a própria criança cria: "Quando os interesses do menino voltam-se para os seus genitais, ele denuncia o fato manipulando-se com frequencia; e depois ele descobre que os adultos não aprovam o seu comportamento. Mais ou menos claramente, mais ou menos brutalmente, pronuncia-se a ameaça de que essa parte dele que ele tanto estima lhe será tirada. Em geral é das mulheres que parte a ameaça; muito freqüentemente elas procuram fortalecer a sua autoridade referindo-se ao pai ou ao médico, que, dizem elas, executará a punição. Assim, sou de opinião que o que provoca a destruição da organização fálico-genital da criança é a meaça de castração. Não de imediato, é verdade, e não sem que outras influências também contribuam" (Freud) Mais recentemente (1955) analista israelense M. Woolf deu um exemplo explícito de medo de castração nas meninas: "Uma garotinha que era criada num kibbutz recusava-se a dormir no chalé das crianças. Toda vez que a mãe tentava levá-Ia de volta para a cama, aparentemente adormecida, a menina acordava tremendo e chorando: "O cachorro arrancou o meu pipi". A enorme angústia, como uma reação fóbica, que as mulheres podem sentir ao pensar em menstruação ou relação sexual ou parto tem origem evidente na angústia de castração do passado." Ward, Ivan. Castração, RJ, Dumará-Ediouro,2005 - Conceitos da Psicanálise, v 7-, pag 41) A castração pode estar presente até mesmo na vida escolar da criança. Melanie Klein, principal seguidora de Freud, demonstrou que as inibições na escola podem estar diretamente relacionadas com o "pavor de castração": " O que para os professores parecia ser preguiça ou falta de interesse ou inaptidão nos esportes e no atletismo revelou-se para Klein como uma "inibição neurótica" e uma sujeição da criança ao medo da castração. Era como se a criança dissesse: "Se eu fizer X, serei castigado (com a castração)". Por exemplo: "Se eu fizer algo que represente simbolicamente o meu desejo pela minha mãe, serei punido com a castração". Só quando a angústia de castração fosse solucionada seria possível começar a superar a inibição" ( Ward, Ivan. Castração, RJ, Dumará-Ediouro,2005, pag 9) É possível afirmar que o medo da castração esteve presente no inconsciente da humanidade durante séculos e que continua camuflada nas profundezas da mente de de cada pessoa em particular. A psicanálise trouxe à luz os sentimentos que estiveram na escuridão. Talvez assim possamos entender o impacto e a reincidência do castração na Bíblia e na história da arte. Talvez todos nós possamos agora auscultar nosssos próprios temores que ainda se encontram ocultos em algum canto de nossa memória e de nossa história pessoal João Pedro Ricaldes dos Santos. 21/08/2011
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