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"Francesca da Rimini", Ary Scheffer
Francesca da Rimini (1255-1285) foi uma dama da nobreza medieval italiana, filha do governante da região de Ravena. Para selar um acordo de paz com a cidade de Rimini, seu pai concedeu a filha em casamento com o herdeiro da família Malatesta, que controlava a cidade rival. Ocorre que Francesca apaixona-se por Paolo, seu cunhado.De acordo com Dante Alighieri, ambos foram seduzidos pela leitura da lenda de Lancelot e Guinevere, e se tornaram amantes. A história retratada na célebre poesia de Dante, "A Divina Comédia", foi recriada inúmeras vezes nas artes plásticas e na Ópera. A versão do pintor franco-holandês Ary Scheffer obteve fama internacional no século XIX e viria a inspiriar a famosa escultura "O Beijo", de Rodin. Quatro casais e dois funerais se fundem nesta imagem: Lancelot e Guinevere, além de Francesca e Paolo são os mais evidentes. Mas há mais, não tão evidentes assim.
Ary Scheffer (1795-1858), pintor francês nascido na Holanda, cresceu numa família de artistas. Seu pai, sua mãe e seu avô foram pintores, mas nenhum deles alcançou a sua projeção e popularidade. Estudou em Paris no atelier do pintor neoclássico Pierre-Narcisse Guérin. Frequentemente buscou inspiração na literatura para seus temas, principalmente em Dante e Goethe. Manteve distância das experiências estéticas dos pintores românticos, então em voga na Europa, como Delacroix e Gericault. Por vezes seu estilo foi considerado frio e clássico demais.
No Salão oficial de 1835 obteve o seu maior sucesso, com a tela “Francesca di Rimini”, baseado no famoso episódio de amor e traição narrado no Canto V do poema de Dante Alighieri, A Divina Comédia. Também se dedicou a temas religiosos e a retratos de celebridades do seu tempo, como Charles Dickens, Frederic Chopin e a rainha Marie Amelie, esposa do rei da França Louis Felipe de Orleans (1930-1948)
Sua forte ligação com a família real causou sua ruína, quando a monarquia foi deposta pela Revolução Popular de 1848, que daria início à Segunda República francesa (1848-1852). Neste novo contexto passou a realizar várias versões do mesmo tema de Dante, provavelmente pela pressão de sua decadência financeira. Dedicou uma destas versões, em escala reduzida, a sua amiga Pauline Viardot (1821-1910), famosa cantora de ópera e esposa de seu grande amigo Louis Viardot, escritor e político também famoso.
Sua tela sobre Francesca teve enorme repercussão mundial, mesmo após 1848, através de gravuras e outros tipos de reproduções, até mesmo em porcelana. No final do século, o grande escultor Rodin retomaria o tema para realizar uma de suas obras mais conhecidas, mais tarde chamada “O Beijo”.
O gosto do público era muito sensível ao tema do adultério e da paixão incontrolável, contido neste episódio da Divina Comédia. O beijo proibido, o ambiente medieval, com assassinato e queda para o Inferno, constituíram cenas de forte apelo romântico replicadas no teatro, na pintura, na escultura e na Ópera.
Na fantástica criação do poeta medieval Dante, ele próprio é conduzido aos círculos do inferno por Virgílio, poeta da Roma antiga. No círculo da luxúria encontra figuras históricas que provocaram guerras e matanças, destruindo impérios pela força de seus desejos carnais. Lá estão Helena de Tróia, Cleópatra, Tristão e Isolda. Quando se deparam com Francesca e Paolo, seus contemporâneos italianos, Dante pede permissão a seu guia para uma breve abordagem daquele casal atormentado pelo castigo eterno.
Na versão de Scheffer Dante aparece vestido de vermelho, e Virgílio usa um manto azul e um ramo de oliveira na cabeça. Ambos observam atentamente os espíritos ou as sombras do casal assassinado pelo marido de Francesca. É possível identificar os ferimentos de morte. Suas almas condenadas voam em um turbilhão de pecadores que são jogados inapelavelmente de um lado a outro por uma furiosa ventania, por toda a eternidade. Paolo inclina-se para trás, a mão esquerda esconde o rosto envergonhado, enquanto Francesca, de olhos fechados, permanece abraçada a seu amado, tomando-o firmemente pelo pescoço com os dois braços, seja para se manter junto ao amado, seja para se proteger dos açoites do turbilhão eterno.
Os dois corpos, ou espíritos, em movimento dominam a composição da tela, varrendo-a da direita para esquerda. Este movimento é reforçado ainda pelo tecido esvoaçante que recobre descuidadamente seus corpos, mas principalmente pelos longos cabelos de Francesca agitados pela ventania infernal. A precisão da musculatura não é abandonada, mesmo em se tratando de tanta agitação e sofrimento. O casal é fixado em um instante determinado da rota ascensional como se tudo não passasse de um ponto recortado e congelado daquela trajetória diagonal. Talvez por isso o observador possa contemplar, com detalhes, a descrição da anatomia masculina em bíceps e tórax torneados, mas também feminina, no contorno insinuado de seios e nádegas.
Certo traço de erotismo é, portanto, transmitido. Na figura feminina, este efeito é produzido pela alvura do dorso, pela maciez da pele e pela posição que oferece traços generosos da jovem pecadora aos observadores, seja os de dentro da composição (os dois poetas), seja os de fora (nós). Veja-se que os observadores internos servem de condutor e instigador para os externos, guiando nosso olhar pelo direcionamento indiscreto do olhar deles. Assim como o movimento físico foi interrompido em benefício da anatomia, o movimento doloroso da expiação dos pecados é suspenso em favor da bisbilhotice dos observadores. Ainda que por apenas uma fração de segundo, acabamos nos entregando à tarefa nada edificante de admirar a beleza de uma jovem que, afinal de contas, se encontra no Inferno e nem suspeita que é observada, subtraída em sua intimidade, desconsiderada em seu sofrimento.
De qualquer forma, tanto o poeta Dante quanto o pintor Scheffer interrompem a tormenta dos adúlteros para que possam compartilhar as dores. A ventania amenizada dá oportunidade para um breve diálogo entre Dante e Francesca. O poeta enternecido pelo martírio dela manifesta-lhe comoção e piedade.
A história de Francesca ocorreu na cidade italiana de Ravena na Idade Média. Francesca da Rimini (1255-1285) foi uma dama da nobreza medieval italiana, filha do governante da região de Ravena. Seu pai, Guido da Polenta estava em guerra com a família Malatesta. Quando um acordo de paz foi negociado, Guido concedeu a filha em casamento com o herdeiro, Giovanni Malatesta (Gianciotto), filho de Malatesta da Verucchio, lorde de Rimini. A paz estava selada.
Giovanni tinha o corpo deformado. Guido sabia que Francesca (conhecida por sua beleza) o iria recusar, de modo que o casamento foi realizado por procuração através do irmão, Paolo, também famoso pela beleza. Francesca apaixona-se por Paolo, e não tinha conhecimento da fraude até à manhã seguinte ao dia de casamento.De acordo com Dante, Francesca e Paolo foram seduzidos pela leitura da história de Lancelot e Guinevere, e se tornaram amantes. Posteriormente foram surpreendidos e assassinados por Giovanni.
O poeta Dante Alighieri (1265-1321), filho da nobreza de Florença, utilizou o romance de Lancelot para associá-lo ao caso de Francesca, no Canto V do Inferno (primeira das três partes da Divina Comédia) como recurso para sua poesia lírica. Trata-se de um dos contos dos Cavaleiros da Távola Redonda, no qual Lancelot apaixona-se por Guinevere, a bela esposa do Rei Arthur, de quem Lancelot era fiel vassalo. Francesca e Paolo tinham em comum não apenas a beleza, mas a paixão pela literatura, o que não era virtude do seu marido e de nenhum guerreiro medieval. Passavam tardes em saborosas leituras de cavalaria.
Há aqui uma sobreposição de imagens e sentimentos e uma supressão de tempo e espaço. Tudo se unifica no poder do amor (ou do pecado?). Os dois leitores solitários entregam-se a um beijo irresistível e avassalador no exato momento em que a leitura alcançava o clímax da trama, o justo momento do também irresistível beijo entre o fiel vassalo Lancelot e a esposa de seu senhor.
A fusão de tempo, espaço, sentimento e imagem não para aí. Afinal sabemos que também a destinatária deste pequeno quadro de Scheffer estava envolvida em amores proibidos. A grande cantora de ópera, Pauline Viardot, para quem o pintor dedicou esta versão da sua obra mais famosa na Europa de meados do século XIX manteve durante três anos um escandaloso caso com o poeta russo Ivan Tourgeniev. O casal Viardot era parte de um círculo de amigos, entre músicos, pintores e poetas, que freqüentava o estúdio de Scheffer. Mesmo após a decadência financeira Scheffer e os Viardot mantiveram muito ligados. Talvez por esta proximidade e por sua forte formação religiosa, Scheffer sentiu-se na obrigação de aconselhar Pauline a romper com o amante a reconstruir os laços familiares. De fato, após três anos de separação o casal reatava suas funções conjugais, segundo a ordem e a tradição.
Pauline era de um carisma fascinante, bela e sedutora. Não foram poucos os artistas que por ela se apaixonaram. Nem mesmo Scheffer resistiu a seus encantos femininos. Apesar de manter o tempo todo o papel de pai e confidente da cantora, às escondidas nutria uma paixão impossível, somente revelada nos últimos momentos de sua vida.
O quadro foi, portanto, uma peça chave neste imenso jogo amoroso. Reunia em si uma variada gama de significados, como um código, uma senha secreta que revelaria mundos inimagináveis, intenções inconfessáveis em busca de respostas inadiáveis. Em primeiro lugar trata-se do maior sucesso do pintor, convertido em uma versão individualizada, íntima, personalizada. Seria como se o grande e saudoso escritor José Saramago enviasse a uma leitora especial e fascinante do Brasil um único exemplar de uma inédita versão de bolso do “Memorial do Convento”, obra que lhe rendeu o único Nobel de Literatura em língua portuguesa. Todos poderiam desfrutar do impacto e da beleza da obra prima de Scheffer nos Salões oficiais de Paris. Só Pauline teria uma edição customerizada, em tamanho reduzido.
Em segundo lugar, presentear a jovem e linda amiga com uma tela que versa sobre adultério, pecado e expiação, foi um recurso que serviu de requintada e amistosa advertência. Sua sincera amizade e suas fortes convicções morais seriam os portadores do presente entregue a quem não deveria mais se entregar à devassidão. Mas cabe uma indagação. As convicções da mente seriam superiores às inclinações do coração? Scheffer acreditava mesmo que Francesca merecia o castigo e que, portanto, Pauline também o mereceria? Não seria uma forma velada de redimir o pecado da amiga, tranqüilizá-la? Ou seria uma senha bem resguardada, à prova de investidas da moral e dos bons costumes, que carregaria em si a tentativa de sugerir à amiga um sinal de sua paixão oculta? Tudo isto foi feito de forma consciente por Scheffer?
João Pedro Ricaldes dos Santos. 16/05/2011
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